quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Compulsivamente


Conto
As palavras que escrevo, as letras que erro, as vezes que apago.
Conto, as vozes que oiço, as teclas que matracam, as riscas do teu casaco.
Conto as pernas das mesas e das cadeiras, os minutos da hora, os segundos do minuto.
Conto as folhas do caderno, os galhos de uma árvore lá fora, as moedas na carteira, as mensagens por ler.
Conto, os degraus que desço, os quilómetros que conduzo, os fios de cabelo arrancados.
Conto os pinos da beira do passeio, as árvores na beira da estrada, os buracos no pavimento.
Conto os traços descontínuos, os refletores prateados, os sinais de perigo, os carros na fila de transito.
Conto, as lombas de abrandamento, as barras na passadeira, os peões à espera para atravessar.
Conto os semáforos vermelhos, os vidros nas janelas, as varandas nas fachadas.
Conto, os andaimes da obra, os losangos da grua, as pessoas que correm.
Conto os lugares no estacionamento, os carros molhados, as linhas amarelas, as saídas para a rua.
Conto as pedras da calçada, os bancos do jardim, os azulejos da barbearia.
Conto as beatas caídas no chão, as núvens no céu, as gotas de chuva que começam a cair, as varetas do guarda chuva.
Conto os candeeiros acesos, os cartazes colados nos muros, os murais vandalizados.
Conto os quadrados do pavimento, as telhas da casa, os pombos que voam em bando, os pardais nos cabos eletricos.
Conto as portas da rua, os andares dos edifícios, as campaínhas do prédio.
Conto, as pessoas na sala de espera, as batas brancas que passeiam, os botões do vestido, o ritmo do meu coração.
Conto, as pessoas à minha frente, os medicamentos no meu saco, os pontos que acumulei.
Conto as velhotas que conversam, os homens que se assoam, as crianças que espirram.
Conto as crianças à saída da escola, as pessoas que entram na mercearia, os bagos do cacho de uvas.
Conto o tempo que falta, as chaves que abrem as portas, as voltas que o trinco dá, as vezes que limpo a sola dos sapatos.
Conto a roupa em cima da cadeira, os vincos dos lençóis, os lenços ranhosos na mesa de cabeceira.
Conto as páginas por devorar, as estrelas no céu, os cobertores que me aquecem, os bocejos que dou até adormecer.
Já não conto mais, até acordar. Depois, conto, novamente.

Conto, tudo, mas não conto segredos.

16 de Janeiro de 2013

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Pesadelo


Acordei de manhã, o sol ainda não havia despontado no horizonte mas a noite já estava de partida. Tinha a sensação que era muito cedo e não apetecia sair da cama. Lentamente, pus os pés de fora, destapei-me e sentei-me na beira da cama. Sem sair do lugar, estiquei-me para alcançar a correia da persiana e puxei-a. Pela janela, apercebi-me que o dia iria ser cinzento e ventoso.

Morava numa grande cidade com prédios altos. Lá fora, o edifício abandonado  de um antigo hotel de uma grande cadeia, baloiçava com o vento mas não partia, parecia feito de borracha, mas tremia como gelatina. Tinha ainda o painel luminoso vermelho e branco do hotel que em tempos fora de cinco estrelas. Não tardaria muito o edifício iria ceder.

No céu, o vento agitava remoinhos de detritos. Dirigi-me à sala. Lá fora a vista era a mesma do quarto, estranhamente, pois estavam em lados opostos da casa. No ar, bandos de pássaros negros povoavam o céu. Os pássaros moviam-se com o ritmo frenético de um cardume à hora da refeição, para lá e para cá, em remoinhos que pareciam túneis. À medida que se aproximavam da janela reparei que não eram meros pássaros negros, eram monstros alados, com bocas cheias de dentes e olhos grandes e esbugalhados, eram "gremlins" alimentados após a meia noite, com asas, viscosos, sem pelo e extremamente agressivos. 

"É o fim do mundo!"-  pensei - e apressei-me a puxar as persianas para baixo em toda a casa.

Era o fim do mundo. Lá fora o caos estava instalado. Os sons eram horrendos, o céu escuro, vento, frio, humidade. Era o fim do mundo e eu não tinha que ir trabalhar, ia ficar em casa com o meu marido à espera que o fim do mundo passasse.

Mas o que se seguiria ao fim do mundo?

Acordei, tinha sono, estava frio e a chover. Eram sete da manhã e tinha que ir trabalhar. O mundo, lá fora, estava exatamente no mesmo sítio, pelo menos na cidade pequena onde vivo.