quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Perguntas sem resposta

"Esta noite saí de casa à procura do amor. Não levava mais do que a roupa do corpo e a solidão às costas. O meu rosto era de pesar, sempre ouvi falar no Amor e nunca o conheci. Imaginava-o imenso, uma força universal capaz de mudar até os mais incrédulos. Mas a única coisa que sentia era um vazio no espírito, e uma curiosidade magnética por esse tão enaltecido sentimento. Vagueei pelas ruas frias, abracei a escuridão, penetrei cada pedaço seu, perguntei às estrelas os seus tantos nomes, tantos e tão tristes. Não há limite de palavras para imputar à escuridão.
Não tendo encontrado aquilo que queria, entreguei-me ao primeiro estranho que me deu a mão. Não passava de um estranho, talvez em busca do mesmo que eu, mas foi uma pessoa ao acaso e não alguém escolhido a dedo, alguém como outro alguém qualquer, tão qualquer quanto eu mesma. Em troca de nada e em troca do amor, despi-me de preconceitos, de medos e de anseios, e deitei-me na cama do prazer e da loucura, abracei a paz e deixei-me levar pelo desconhecido, envolvi-me num transe frenético de suor, calor e odores exóticos não identificáveis. Eu senti uma força, e depois outra e outra que me fez ver luzes de todas as cores, senti o mais humano dos sentimentos e o mais difícil de expressar por palavras, acima de tudo tive quase a certeza de sentir o amor. Mas tudo não passou de um instante, em que a noite me deixou nua numa cama de motel, nua em pêlo e nua de sentimentos, mais sozinha que nunca e perdida num caminho cujo rumo nunca tracei. Por momentos penso que saboreei o seu sabor, toquei te perto o seu corpo e proclamei o seu nome, mas depressa tudo se esvaneceu como que de ar se tratasse e senti-me ignorante novamente. O amor, o tão falado Amor, não era mais que a sensação de trepar, alcançar um cume, vislumbrar uma luz, e de seguida cair do alto, estatelar-me no chão e mergulhar na escuridão outra vez.
Porquê?... Porquê… Já não sei o porquê da minha busca incessante, já não sei até se procuro uma coisa que não existe para confirmar a sua inexistência. Contudo, quanto mais procuro, mais vontade sinto de procurar."
Texto solto um bocado antigo e de data incerta.

Caos

Hoje dou comigo a olhar para o passado e tento lembrar tudo o que esqueci, tento viver em poucos segundos uma vida inteira de alegrias e tristezas, de dor e sofrimento, de guerra e de paz comigo e com o mundo, como se isso fosse alterar alguma coisa. Dentro de mim ainda sinto uma revolta, um novelo de ideias que nunca foi desfiado, deixado ao acaso e perdido num canto qualquer da casa que há em nós e que por vezes é abandonada e deixada a apodrecer à chuva e ao frio da indiferença. Sinto uma mágoa tão grande e incompreensível e ao mesmo tempo uma vontade de fugir, não sei se de mim ou do mundo, não sei para onde nem como, e cerro os punhos e encho-me de coragem a tentar escapar à linha da vida que nos conduz na nossa embriaguês de viver, mas quando dou por mim perdi a força, e a coragem esvai-se por entre os dedos das mãos que começam a abrir-se rendendo-se aos factos que não quero aceitar.
Olho para o passado e tenho lembranças, o presente traz-me duvidas e o amanhã é um deserto em cujas areias nunca saberei quando me vou afundar, enquanto vagueio pelas ruas ao som de uma música que só eu conheço, só eu sei que existe, o ritmo da minha vida porque o do relógio parou, já não dá horas, ao contrário da minha vontade de viver em que todas as horas contam, e que vai ficando cada vez maior, como aquele comboio pequenino que avista ao longe o fim da linha da sua ultima paragem.
Sabendo que a Vida não é eterna tento fazer tudo a correr, agarro novamente a força, e a coragem invade-me como a batida forte daquela música que só eu ouço quando percorro as ruas da cidade caótica à tua procura como se fosses o ar que respiro. Mas à medida que agarro as coisas, deixo-as cair sem ter tempo de as aproveitar ou até de as sentir, tocá-las com o meu corpo, que foi teu e que um dia o Tempo há-de roubar, deixando a alma despida a vaguear pelo espaço em busca de outra pele mais feliz e menos breve, que a ninguém serviu mas que ao vê-la me deu pena de a deixar tão triste e sozinha, então visto-a e eis-me aqui.
Então desato a gritar aos céus e aos deuses que não me ouvem ou se fazem de surdos e pergunto porquê a minha sina, sempre com a sensação de que tudo e todos estão contra mim, de que tudo corre mal quando ninguém me vê, talvez por eu ser tão pequena ou por estar tão encolhida dentro da minha bolha de oxigénio. Desato a chorar e dobro-me sobre os joelhos contorcendo-me em raiva quando devia estar a lutar. Por vezes apetece-me rasgar a pele que visto e deixar-me levar pelo vento como as folhas das árvores no Outono quando morrem, desintegrar-me no ar e entrar nas casas e nos sonhos de quem dorme descansado e espera um novo amanhã.
Agora estou aqui farta de pensar, farta de sentir, farta de tentar encontrar nas ruas cinzentas e sujas o vermelho dos teus lábios – de que serve dar um poema a alguém que não o compreende? É tempo perdido assim como tentar achar aquilo que nunca me deste.
Um dia acordo e tenho a sensação de que o tempo não passou e que foi tudo uma alucinação, um pesadelo, é então um novo dia em que nada corre mal, e levanto-me da cama como que para a vida, tento escolher uma roupa como que um destino, mas quando olho para o peito está lá a marca, e a ferrugem escorre da ferida em que me espetaste o teu ódio como um prego. Então olho para o chão e a madeira apodreceu, o tecto encheu-se de teias de aranha e as paredes de fendas cobertas por bolor, e quando vou lavar o rosto a minha pele não é a mesma, e dou conta de que afinal o tempo passou enquanto tentava lutar com as minhas forças em busca de alguém que a vida nunca me deu.
Agora é tão tarde e sinto que não posso voltar atrás mas que se pudesse corria para o telefone e dizia-te tudo aquilo que sinto. O Tempo roubou-me a Vida mas eu troquei-lhe as voltas para que ele ficasse baralhado e eu pudesse viver mais um pouco só para poder ver-te uma última vez mesmo que isso nada adiantasse. Se eu pudesse estar contigo uma última vez irias saber porque me sinto assim vagabunda nesta vida em que não sei o que fazer e me deixo levar pelos empurrões de uns e de outros, e para não os magoar magoo a mim mesma, porque o mundo girou mas eu fiquei parada no mesmo lugar sempre à espera que fosses tu a tomar o primeiro passo. Agora vejo que não valeu a pena revoltar-me tanto e que não saí do mesmo lugar porque andava demasiado ocupada às voltas com os meus pensamentos.
Por enquanto só tenho vinte anos e sinto-me perdida neste mundo, nasci a gritar e assim vou continuar a gritar por aquilo que quero, vou cerrar os punhos e não vou deixar as forças fugirem de novo como até aqui tenho feito, porque o que eu quero é viver a vida mais do que ela é, e olhar para o passado e sentir que vivi, estar presente e sentir-me feliz, ver o futuro ao longe e não sentir pena de nada que tenha feito porque não quero morrer arrependida da felicidade que senti ou dos pecados que cometi e hei-de pecar as vezes que forem preciso se isso me fizer feliz.
A nossa vida somos nós que a construímos pelos nossos passos e com os nossos dedos e não nos deixando levar pelo mundo que nos rodeia, a menos que o mundo seja forrado por pessoas como tu mas isso é outra história que depois te contarei se tiver tempo.

Nair Sobral Santos
10-03-2002 17:40
Caos

Eu nunca me vi a mim própria sem ser ao espelho.

Eu nunca me vi a mim própria sem ser ao espelho.
Queria por vezes abandonar o meu corpo
E observar-me como nos meus sonhos
Em que sou espectadora de mim própria
Como se estivesse a ver outra pessoa.
Eu queria poder observar o que os outros vêem
Os meus gestos, a expressão do meu rosto, o meu andar,
Queria ouvir a minha voz como os outros a ouvem,
Sentir o cheiro da minha pele como o vento o espalha,
Saboreá-la como só a água faz.
Queria apalpar o meu corpo, sentir o seu toque,
A pele macia das minhas costas sob as minhas mãos.
Queria por vezes entender o que sinto...
Porém sei que nunca poderei sair deste corpo
Que me prende como se fosse um labirinto,
Dentro do qual por mais voltas que dê nunca encontrarei saída.
Sei que nunca me vou olhar sem ser no espelho,
Nunca vou poder ver o meu sorriso e adivinhar o que estou a pensar.
Nunca vou poder encostar o meu ouvido ao meu peito
E escutar o bater do meu coração,
Ou o som da minha respiração.
Nunca vou poder olhar nos meus olhos e dizer de que cor são,
Nunca vou poder beijar as minhas costas
Nem acariciá-las com as pontas dos dedos.
Nunca poderei beijar o meu rosto nem os meus olhos,
Jamais me poderei carregar ao colo até à cama
Ou dar a mim própria um beijo de boa noite,
Afagar os lençóis e depois apagar a luz...
Sei que nunca me vou vigiar durante o meu sono como se fosse um anjo.
Nunca me vou poder olhar sem ser no espelho...
Nunca me irei cruzar comigo na rua,
Ou andar comigo de mão dada
Nem irei jamais apaixonar-me por mim à primeira vista.
Nem irei dizer a mim própria que estou bonita.
Sei que nunca me vou encontrar quando estou mesmo aqui, aqui!
E a única coisa que vejo quando me procuro é um corpo sem rosto,
O qual só encontro reflectido no vidro de um espelho

Quando não posso vê-lo no teu olhar,
Quando tu não estás aqui para completares aquele pedaço que me falta
E que ainda não desisti de procurar
Nas linhas das minhas mãos,
Que nunca se hão de cruzar
Com as veias do teu coração.

Nair Sobral Santos
06-11-2001

Editado
28-11-2010

Diário: Sonho 98/12/08

Há tanto tempo que não escrevo que nem reconheço a minha letra. Ultimamente tenho andado muito distante de tudo e de todos. Sinto-me ansiosa com o dia de amanhã a tão cansada, sinto que ando aqui para nada. Estou farta de me enganar dizendo a mim mesma que para a próxima tudo será diferente, correrá melhor, que conseguirei alcançar certas expectativas. A minha cabeça já não é o que era, já deu tudo o que tinha a dar, já nem sequer sou uma pessoa criativa. "Quando o Criador morre, a criação morre" e eu morri.
Dava tudo para voltar a ter a minha alegria e segurança de volta, a minha criatividade e inocência, esvaziando a minha mente das preocupações da vida, ser apenas eu em toda a minha inteireza. Mas o que o tempo leva não traz de volta; a juventude e o vigor, a frescura e a suavidade – os traços vão ficando mais definidos e os contornos mais carregados. E como eu desejo sair dos contornos impostos pela sociedade hipócrita, contornos que só servem para nos prender, privando-nos de um mundo infinito de prazer, sem limitações.
Acordo de um sonho não concretizado, fruto de um desejo preso entre rígidos traços negros, horríveis e frios traços de expressão. Acordo para um mundo em que ninguém vive, no sentido total da palavra. Ninguém faz, nem mesmo acredita no que lhe vai na alma.
Mas agora é hora de dormir e de fechar os olhos sempre abertos, despertos para o mundo, olhando em volta, com atenção. É hora de dormir, é hora de viver, é hora de sonhar. Pé ante pé, com cuidado entro no mundo dos sonhos, cuidadosamente para não sair dos contornos limites da imaginação, quando o que menos quero é saber de contornos, apenas quero entrar severamente no sonho e lá residir para todo o sempre, onde a vida não tem limites; quando eu já nem sequer sonho, por estar tão tensa como uma raiz de uma enorme árvore.
É hora de dormir, e de sonhar, de fugir e de pensar, reflectir no que somos, no que fazemos, e para onde vamos. É hora de viver.

O Olho

Era um olho triste
Olhou-me de baixo descaído
Estava molhado como que salpicado pelo orvalho
Era límpido
Porém apagado
Chorava com amargura
E um travo a solidão
“Não me olhes” pediu-me ele
“Não me olhes que me vês”
E olhou para abaixo outra vez.
Ali ficou parado
No chão pregado
E uma lágrima se fêz.

20-04-2007
A caminho de Alverca

Alma

Olhos da Alma
Não vêm nada
Só escuro
E à minha volta olhos choram

Eu ouvi os olhos tristes daquela alma penada chorar no escuro
Eu toquei nas suas lágrimas molhadas e frias
E senti uma dor aguda no meu dedo
E este ficou azul e imóvel
Acho que congelado.

Estava a dormir
E uma alma triste veio ter comigo
Segredou ao meu ouvido
E eu acordei do meu sonho turbulento
Enquanto fugia dos cães que ladravam atrás de mim
Enquanto fugia da sua raiva devoradora
E o diabo anda sempre à espreita….

Dei-lhe as mãos
Deixei-me guiar pela voz da alma e desejei poder vê-la
E flutuei agarrada a ela
Não sabia onde ela me levava mas tive confiança
Deixei-me ir devagar
Por entre a escuridão
E por entre as vozes sinistras da noite
Que povoam os meus sonhos
Tornando-os em pesadelos.

A voz da alma era leve, tranquila e eu acalmei,
Respirei fundo e a escuridão foi-se
E vi a luz intensa do olhar morto de uma alma triste
Que me fazia levitar
E voar para fora do meu quarto
Para lá das paredes geladas do meu prédio abandonado.

Fechei os olhos por breves instantes
Não sei por onde fui
Que passos me conduziram
Que mãos me tocaram
Que vozes me guiaram…
Quando os abri
Eis que tudo à minha volta estava parado no tempo
Como se fosse a cena parada de um filme
Em que o tempo pára e tudo fica congelado
Algures num espaço distante
E não queria acreditar
Na visão dos meus olhos
Que a alma já não viam.
Pessoas paradas nas suas acções normais
Chávenas de café entre os dedos
Passos de dança no meio da pista
Esquecidos como partículas de pó nos raios de sol.

O silêncio era notável
E tão profundo
O ar parecia condensado
Movia-se à volta dos corpos
Num movimento sólido e pesado
No entanto o meu corpo deslizava
Como um peixe na água.
À minha volta tanta gente
E eu sentia-me tão só.
Ninguém me via
Ninguém me ouvia
Estava tudo parado, quieto, mudo
Estava tudo morto.

Mas eu estava viva
E queria fazer alguma coisa
Queria romper aquele silêncio dormente
Chicotear o ar tornando-o menos pesado
E rasgá-lo, traçar por ele o caminho,
Tantos caminhos de tanta gente.
Queria acordar aquelas vidas
Quando não conseguia que elas acordassem a minha
Queria deixar de estar só
Para poder dormir descansada novamente
Na minha cama perdida no vazio do meu sonho
E deixar de ter medo
De no meio da escuridão
Ouvir passos sinistros
Vozes pesadas tocar-me no rosto
E alguém que não sei quem
Longe de mim, longe do meu corpo.

Comecei a tocar nas pessoas levemente
Tentei despertá-las daquele estado passivo
Tentei agitar o ar à sua volta
Movendo-me com passos de dança alegres
No meio das luzes dos raios de sol penetrantes
Que davam cor às partículas de pó estagnadas no ar.
Tentei falar com elas
Afastar os seus fantasmas
Murmurar-lhes aos ouvidos “Carpe Diem” com voz profunda
Tentei empurrá-las
Fazê-las cair no chão.
E todo o meu esforço foi em vão
Todo o meu impulso
Em vão
Toda a minha coragem
Em vão
Toda a minha vontade
A minha fúria
A minha raiva
O meu suor persuasivo
Em vão, quando me vi caída no chão de joelhos machucados
E as mãos esfoladas
E o rosto vermelho de tanta força
E os dentes cerrados de tanta vontade
E lágrimas condensadas no ar pesado
E eu… Desisti de lutar por alguém
Desisti de tentar mudar o mundo
De acordar quem quer que fosse
De tentar mudar a minha forma de pensar.

Chamei a alma de volta
E ela veio prontamente
Deu-me as mãos
Segurou as minhas com força e deixou-me dormir
Pairando no ar como um grão de pó.
Fechou-me os olhos
Tapou-me os ouvidos
Levou-me daquele lugar morto
De volta ao escuro do meu quarto
Que deu lugar à luz
Para me acolher de novo na minha cama
No calor escondido dos lençóis
E no conforto eterno da almofada
No ruído intenso da minha respiração
A quebrar o silêncio
A agitar a vida
E quebrar a morte.

Deixei-me levar pelos passos da alma
Até ao meu quarto quieto
No meu prédio vazio
E povoado de gente no meu coração
E deitou-me de novo
Num sono tranquilo
Numa melodia suave
E uma mão doce acariciou-me o rosto
E eu estava a sorrir
Com o rosto cansado
E contente de estar em casa de novo.

O dia nasceu
A alma partiu
Mas eu fiquei.

Marta

22-11-1999

Ela disse que vinha, jurou que desta vez viría ao meu encontro. Esperei quase a tarde toda no café da minha rua, a olhar pela janela só para ver se era ela quem passava, mas foi em vão. Ela não apareceu à hora marcada nem na hora a seguir, nem passadas duas, quatro horas. Perdi a tarde toda.

O empregado do café vinha constantemente à minha mesa nas suas tentativas frustradas de me fazer consumir: "Vá-se embora, olhe que sem café não vai aguentar muito mais tempo de olhos abertos!" dizia ele. E depois, virava costas e seguia para trás do seu balcão.
Eram seis da tarde, começava a ficar cansado e farto do livro que levei para ler enquanto esperava. Decidi ir-me embora. Paguei a conta: um café e uma garrafa de água, e saí para a rua. Estava um frio de rachar, as pessoas pareciam chaminés, fumegando pela boca o bafo quente que condensava à sua frente, formando uma coluna branca de gotas de água. Ao fundo da rua, de um lado e de outro, ouviam-se pregões vindos das vendedoras de castanhas quentinhas. Que bem que me sabiam! Ainda procurei nos bolsos alguns trocos, mas gastei o resto no café.

Andei a diambular pela cidade iluminada o resto da tarde. Eram nove horas quanto meti a chave à porta. Rodei-a. Abri a porta. Na sala esperava-me o Jaime, o meu pequeno salsicha, muito contente, trazendo na boca uma das minhas pantufas de pelo de ovelha. Jaime abanava a cauda e sacudia as orelhas, mostrando a sua alegria por me ver.
Sentei-me no sofá e descalcei-me, um cheiro abafado e quente veio-me ao nariz, provavelmente devia mudar de meias mas não o fiz, não me apeteceu.

Estava já descansadinho, a jantar, quando tocaram à campaínha. Parei de comer para ir abrir a porta: pousei os talheres, limpei a boca e corrí em direcção à porta que era agredida insistentemente pelo som estridente da campaínha. Espreitei pelo pequeno orifício da porta e vi, para surpresa minha, a rapariga de me deixou pendurado no café a tarde toda.

Fiquei um tanto atarantado, sem saber ao certo como a receber, mas ela abraçou-me e cumprimentou-me com um sorriso intenso e um beijo enérgico no canto da boca.

Antes de se sentar no sofá, desculpou-se do seu atraso dizendo que ficara retida no trânsito, e que só conseguira estacionar o carro a dois quarteirões da minha casa, tendo por isso que vir a pé. Pelo caminho perdeu um dos saltos de um dos sapatos o que a fez voltar a casa para mudar de calçado, e, por conseguinte, de roupa, o que lhe deu muito trabalho a escolher, pois não é por acaso que as mulheres têm o guarda-vestidos atafulhado de roupa, nem que seja só mesmo para terem um motivo de se atrasarem para os encontros marcados, o que lhes dá tempo de pensarem no que vão dizer durante esses encontros...

A sua desculpa pareceu-me tão bem elaborada que não me dei ao trabalho de pensar se era verdadeira ou falsa. Deixei-me levar pelo seu encanto.

A Marta é ruiva e muito inteligente, bonita e simpática, gostei imenso de a conhecer pessoalmente. Esqueci-me logo do tempo que me fez perder à sua espera no café. Tivemos uma noite muito agradável, nunca mais a vou esquecer: conversámos, bebemos licor de ginja, ouvimos música calma, mostrei-lhe a minha biblioteca, pelo menos uma amostra daquilo que quero ter no futuro, folheámos livros, rimo-nos, sorrimos, trocámos olhares, observámo-nos, vimos aquilo que durante meses esteve retido por detrás das palavras afáveis de longas conversas noturnas por Internet.

O tempo passou sem nos darmos conta, ela tinha de ir embora. Não a podia deixar descer sozinha, por isso acompanhei-a até ao seu carro que ficou estacionado numa rua paralela à minha. Estava frio, mas continuavamos aquecidos pela energia frenética das emoções do primeiro encontro. Não a queria deixar partir, e via nos seus olhos azuis que ela também não o desejava. Mas despedimo-nos, com a promessa de nos voltarmos a ver, e foi cada um para seu lado.

Voltei para o conforto do meu lar, onde o Jaime me esperava na minha cama; aqueceu-ma, que bem que me soube, meter-me debaixo dos lençóis de flanela quentinhos. Adormeci com um sorriso de tolo na cara, com a sensação de que ela ainda estava ali, sentada na cama, nua, linda, a observar-me enquanto eu lia para ela uma página de um dos meus livros de poemas preferidos.

29-09-2005 (re-editado)

Feliz Ano Novo

Quando se acaba o ano 2008 e se entra no 2009 em casa de pessoal bebado e ganzado, como me aconteceu, pensa-se que o resto do ano vai ser uma loucura. Finalmente tenho abertura de espírito para fazer coisas novas, este ano vai ser cheio de aventuras e novas experiências... Fumarei umas ganzas, não vai fazer mal nenhum é só erva! E depois não quero morrer estúpida. Vou conhecer pessoal meio marado, boa gente mas com as ideias um bocado atrofiadas... a abertura de espírito permite-me por os preconceitos de lado e aceitar que uma imagem não faz das pessoas piores, só porque têm rastas, ou o cabelo rapado não as torna delinquentes, algumas podem até ser bastante cultas, mesmo que não saibam nada de física, política ou economia, mas são-no, cada uma na sua especialidade.

Vou fazer muitas amizades, vou cultivar os amigos, reanimar amizades adormecidas, organizar eventos sociais, arranjar um namorado a sério que será para toda a vida, um potencial pai dos meus filhos e companheiro de vários passatempos.

Vou reunir membros da família que não se vêm há algum tempo, os meus tios, irmãos da minha mãe, os meus primos e os recém nascidos netos e netas.

Vou fazer aquilo tudo que tenho deixado para fazer ao longo dos meus quase vinte e oito anos de existência, vou redefinir a minha personalidade, vou reviver antigas vocações, como a música...ou a igreja...

Vou comprar casa finalmente porque vou ficar efectiva na minha santa terrinha...Caldas da Rainha... e vou ter um cão, um beagle! Ou um basset, um que tenha orelhas compridas e seja pachorrento.

Vou...vou...não fui nem vou.

Ora... este ano não fumei nenhuma ganza (o meu único amigo curioso por ganzas teve o privilégio de experimentar antes de mim, num evento social de verão e deixou-me pendurada), nem experimentei os famosos cachimbos de água (passei, foi coisa que não me fascinou o suficiente para experimentar).

Não travei amizades com nenhuma pessoa dita menos normal (o pessoal da passagem de ano ficou nesse universo e o meu está a milhas de distância).

Não consegui reunir com nenhuma amiga perdida, mas consegui contactar com pelo menos duas, sendo que numa delas ainda reside esperança de um café ou chá um dia destes e a outra desculpou-se que andava muito atarefada e não viu a minha mensagem...Pois, acho que sabem tão bem quanto eu o que uma desculpa dessas quer dizer... Ainda organizei um evento social e consegui arranjar um namorado...bem um só não, na verdade, dois. Mas pelo menos cultivei uma amizade com o primeiro, não gosto de namoros-ódio, prefiro os que não dão certo mas que acabam em amizade. Se vai dar em casamento e filhos...o tempo o dirá! Para o ano conversamos.

Não reuní com nenhum familiar distante geográficamente, este ano inclusivamente não enviei postais de natal saudosos e cheios de amor fraternal a ninguém. Quanto muito, levei a minha avó de noventa e dois anos a beber um chá e comer uma torrada num bar na Foz do Arelho...

Consegui reviver um pouco aquilo que era em adolescente, um bocado rebelde e despreocupada (por vezes ) com a imagem e com aquilo que os outros pensam, até cortei o meu cabelo a mim própria e ficou aceitável...voltei a reviver o gosto pela música...peguei na flauta de bisel, aquela de plástico amarelo com que comecei a tocar na escola e comecei a praticar, experimentar umas coisas diferentes, tal como uma musiquinha do filme Piratas das Caraíbas...passei os dedos pelas cordas da viola mas ainda não aprendi a tocar nada, só uns acordes..dei uns toques na bateria do meu actual namorado e comprei uma flauta irlandesa, que devia ser a coisinha mais ranhosa que havia na loja, por isso ainda estava à venda...

Igreja...bem... digamos que ainda enviei umas quantas sms ao pessoal para arranjar companhia para ir à missa do Galo, na noite de natal, mas o ppl é mais evoluído que eu e já passou essa fase...fiquei em casa...Igreja e ganzas não combinam lá muito bem pois não?

Quanto a comprar casa...encontrei uma potencial casa, tratei da reserva, contrato promessa compra e venda, sinal, bla bla e ficou-se pelo bla bla, porque a coisa não correu lá muito bem e como tal, continuo à espera... a compra urgente de casa passou a ser uma coisa na qual não quero pensar para não me aborrecer...pois não comprei cão mas arranjei cadela...a minha mãe arranjou trabalho fora de Caldas, eu fiquei efectiva numa escola em Odivelas e agora a cadela fica sozinha em casa todo o santo dia, a ladrar para os estranhos que passam no prédio...é por isso que ter casa perto do emprego é urgente.

A Floppy! Uma bela cadela amarela amarrada à árvore num dia de chuva de Maio, situação à qual não consegui fechar os olhos e seguir em frente de consciencia tranquila...dei meia volta com o carro e tirei a desgraçada da corda. Agora dorme na cadeira de executivo, revestida a pele falsa, no quentinho do escritório, enquanto eu estou sentada num escadote de dois degraus a escrever este balanço. Giro não é?! Pois... Não é de raça, é uma rafeira com umas orelhas enormes a apontar para o céu, que adora correr e salta-me em cima sempre que me vê vestir um casaco, pois pensa que vai à R.U.A. (palavra proibida que dá direito a muitos pulos e lambidelas de excitação).

Chega de NÃOS.

Agora o que realmente se passou este ano de positivo e que vale a pena recordar.

Conheci pessoas espectaculares que considero amigas e com as quais quero manter sempre contacto, pois deram-me a conhecer coisas novas, uma delas foi a dança tradicional outra foram as feiras medievais do lado de dentro com trage a rigor.
Fiquei efectiva finalmente, ao fim de poucos anos de serviço, quando há muita gente na minha profissão que anda décadas para efectivar e posso finalmente estabilizar, comprar casa, ganhar raizes nalgum lado.
Salvei uma cadela da morte e hoje tenho uma amiga para a vida (dela enquanto for viva) que adora ir comigo a todo o lado, assim como andar de carro.
Tive um acidente de carro, o meu primeiro acidente, no qual não tive qualquer culpa, e ainda ganhei dois parachoques novos e pintura parcial das zonas afectadas.
Conheci o meu actual namorado assim por acaso...e temos várias coisas em comum, o que motiva bastante.
Finalmente gosto do meu emprego.
Finalmente não tenho que fingir ser aquilo que não sou, sou eu e sou aceite como tal..quem não me aceita não é meu amigo.
A amizade tem um valor mais profundo e por vezes sobrepõe-se a alguns laços de sangue, sim porque esses também têm que ser alimentados.

Este ano foi positivo graças à minha vontade de fazer novos amigos, graças também às pessoas com quem me cruzei por me permitirem ser sua amiga. Este ano ajudou-me a valorizar umas coisas e a descartar outras, por vezes impostas pela sociedade. Este ano ajudou-me a reencontrar-me comigo mesma, a definir o que quero para mim, a aceitar-me como sou (só não aceito os quilos a mais que engordei mas sei que os vou perder). Tenho pena que uma pessoa ou outra que passaram pela minha vida tenham tomado a decisão de desaparecer, deixar de dar notícias, deixaram de ser amigas. Mas é tempo de seguir em frente, cada um com a sua vida. Quanto às pequenas coisas que não correram tão bem, é preciso dar tempo ao tempo para que tudo se endireite e até lá não vale a pena mexer, pois nada se vai resolver dessa forma, refiro-me à casa. A casa está no mesmo sítio, não desabou e se tiver que ser minha, será.

O que espero para 2010, como um amigo meu me disse outro dia: "que o melhor de 2009 seja o pior de 2010", por outras palavras, que tudo aquilo que foi bom em 2009 seja muitas vezes melhor em 2010!

Deixo aqui um muito obrigado a todos aqueles que me acompanharam ao longo deste ano, assim como votos para que 2010 seja um novo ano em cheio!