quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Marta

22-11-1999

Ela disse que vinha, jurou que desta vez viría ao meu encontro. Esperei quase a tarde toda no café da minha rua, a olhar pela janela só para ver se era ela quem passava, mas foi em vão. Ela não apareceu à hora marcada nem na hora a seguir, nem passadas duas, quatro horas. Perdi a tarde toda.

O empregado do café vinha constantemente à minha mesa nas suas tentativas frustradas de me fazer consumir: "Vá-se embora, olhe que sem café não vai aguentar muito mais tempo de olhos abertos!" dizia ele. E depois, virava costas e seguia para trás do seu balcão.
Eram seis da tarde, começava a ficar cansado e farto do livro que levei para ler enquanto esperava. Decidi ir-me embora. Paguei a conta: um café e uma garrafa de água, e saí para a rua. Estava um frio de rachar, as pessoas pareciam chaminés, fumegando pela boca o bafo quente que condensava à sua frente, formando uma coluna branca de gotas de água. Ao fundo da rua, de um lado e de outro, ouviam-se pregões vindos das vendedoras de castanhas quentinhas. Que bem que me sabiam! Ainda procurei nos bolsos alguns trocos, mas gastei o resto no café.

Andei a diambular pela cidade iluminada o resto da tarde. Eram nove horas quanto meti a chave à porta. Rodei-a. Abri a porta. Na sala esperava-me o Jaime, o meu pequeno salsicha, muito contente, trazendo na boca uma das minhas pantufas de pelo de ovelha. Jaime abanava a cauda e sacudia as orelhas, mostrando a sua alegria por me ver.
Sentei-me no sofá e descalcei-me, um cheiro abafado e quente veio-me ao nariz, provavelmente devia mudar de meias mas não o fiz, não me apeteceu.

Estava já descansadinho, a jantar, quando tocaram à campaínha. Parei de comer para ir abrir a porta: pousei os talheres, limpei a boca e corrí em direcção à porta que era agredida insistentemente pelo som estridente da campaínha. Espreitei pelo pequeno orifício da porta e vi, para surpresa minha, a rapariga de me deixou pendurado no café a tarde toda.

Fiquei um tanto atarantado, sem saber ao certo como a receber, mas ela abraçou-me e cumprimentou-me com um sorriso intenso e um beijo enérgico no canto da boca.

Antes de se sentar no sofá, desculpou-se do seu atraso dizendo que ficara retida no trânsito, e que só conseguira estacionar o carro a dois quarteirões da minha casa, tendo por isso que vir a pé. Pelo caminho perdeu um dos saltos de um dos sapatos o que a fez voltar a casa para mudar de calçado, e, por conseguinte, de roupa, o que lhe deu muito trabalho a escolher, pois não é por acaso que as mulheres têm o guarda-vestidos atafulhado de roupa, nem que seja só mesmo para terem um motivo de se atrasarem para os encontros marcados, o que lhes dá tempo de pensarem no que vão dizer durante esses encontros...

A sua desculpa pareceu-me tão bem elaborada que não me dei ao trabalho de pensar se era verdadeira ou falsa. Deixei-me levar pelo seu encanto.

A Marta é ruiva e muito inteligente, bonita e simpática, gostei imenso de a conhecer pessoalmente. Esqueci-me logo do tempo que me fez perder à sua espera no café. Tivemos uma noite muito agradável, nunca mais a vou esquecer: conversámos, bebemos licor de ginja, ouvimos música calma, mostrei-lhe a minha biblioteca, pelo menos uma amostra daquilo que quero ter no futuro, folheámos livros, rimo-nos, sorrimos, trocámos olhares, observámo-nos, vimos aquilo que durante meses esteve retido por detrás das palavras afáveis de longas conversas noturnas por Internet.

O tempo passou sem nos darmos conta, ela tinha de ir embora. Não a podia deixar descer sozinha, por isso acompanhei-a até ao seu carro que ficou estacionado numa rua paralela à minha. Estava frio, mas continuavamos aquecidos pela energia frenética das emoções do primeiro encontro. Não a queria deixar partir, e via nos seus olhos azuis que ela também não o desejava. Mas despedimo-nos, com a promessa de nos voltarmos a ver, e foi cada um para seu lado.

Voltei para o conforto do meu lar, onde o Jaime me esperava na minha cama; aqueceu-ma, que bem que me soube, meter-me debaixo dos lençóis de flanela quentinhos. Adormeci com um sorriso de tolo na cara, com a sensação de que ela ainda estava ali, sentada na cama, nua, linda, a observar-me enquanto eu lia para ela uma página de um dos meus livros de poemas preferidos.

29-09-2005 (re-editado)

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