Hoje dou comigo a olhar para o passado e tento lembrar tudo o que esqueci, tento viver em poucos segundos uma vida inteira de alegrias e tristezas, de dor e sofrimento, de guerra e de paz comigo e com o mundo, como se isso fosse alterar alguma coisa. Dentro de mim ainda sinto uma revolta, um novelo de ideias que nunca foi desfiado, deixado ao acaso e perdido num canto qualquer da casa que há em nós e que por vezes é abandonada e deixada a apodrecer à chuva e ao frio da indiferença. Sinto uma mágoa tão grande e incompreensível e ao mesmo tempo uma vontade de fugir, não sei se de mim ou do mundo, não sei para onde nem como, e cerro os punhos e encho-me de coragem a tentar escapar à linha da vida que nos conduz na nossa embriaguês de viver, mas quando dou por mim perdi a força, e a coragem esvai-se por entre os dedos das mãos que começam a abrir-se rendendo-se aos factos que não quero aceitar.
Olho para o passado e tenho lembranças, o presente traz-me duvidas e o amanhã é um deserto em cujas areias nunca saberei quando me vou afundar, enquanto vagueio pelas ruas ao som de uma música que só eu conheço, só eu sei que existe, o ritmo da minha vida porque o do relógio parou, já não dá horas, ao contrário da minha vontade de viver em que todas as horas contam, e que vai ficando cada vez maior, como aquele comboio pequenino que avista ao longe o fim da linha da sua ultima paragem.
Sabendo que a Vida não é eterna tento fazer tudo a correr, agarro novamente a força, e a coragem invade-me como a batida forte daquela música que só eu ouço quando percorro as ruas da cidade caótica à tua procura como se fosses o ar que respiro. Mas à medida que agarro as coisas, deixo-as cair sem ter tempo de as aproveitar ou até de as sentir, tocá-las com o meu corpo, que foi teu e que um dia o Tempo há-de roubar, deixando a alma despida a vaguear pelo espaço em busca de outra pele mais feliz e menos breve, que a ninguém serviu mas que ao vê-la me deu pena de a deixar tão triste e sozinha, então visto-a e eis-me aqui.
Então desato a gritar aos céus e aos deuses que não me ouvem ou se fazem de surdos e pergunto porquê a minha sina, sempre com a sensação de que tudo e todos estão contra mim, de que tudo corre mal quando ninguém me vê, talvez por eu ser tão pequena ou por estar tão encolhida dentro da minha bolha de oxigénio. Desato a chorar e dobro-me sobre os joelhos contorcendo-me em raiva quando devia estar a lutar. Por vezes apetece-me rasgar a pele que visto e deixar-me levar pelo vento como as folhas das árvores no Outono quando morrem, desintegrar-me no ar e entrar nas casas e nos sonhos de quem dorme descansado e espera um novo amanhã.
Agora estou aqui farta de pensar, farta de sentir, farta de tentar encontrar nas ruas cinzentas e sujas o vermelho dos teus lábios – de que serve dar um poema a alguém que não o compreende? É tempo perdido assim como tentar achar aquilo que nunca me deste.
Um dia acordo e tenho a sensação de que o tempo não passou e que foi tudo uma alucinação, um pesadelo, é então um novo dia em que nada corre mal, e levanto-me da cama como que para a vida, tento escolher uma roupa como que um destino, mas quando olho para o peito está lá a marca, e a ferrugem escorre da ferida em que me espetaste o teu ódio como um prego. Então olho para o chão e a madeira apodreceu, o tecto encheu-se de teias de aranha e as paredes de fendas cobertas por bolor, e quando vou lavar o rosto a minha pele não é a mesma, e dou conta de que afinal o tempo passou enquanto tentava lutar com as minhas forças em busca de alguém que a vida nunca me deu.
Agora é tão tarde e sinto que não posso voltar atrás mas que se pudesse corria para o telefone e dizia-te tudo aquilo que sinto. O Tempo roubou-me a Vida mas eu troquei-lhe as voltas para que ele ficasse baralhado e eu pudesse viver mais um pouco só para poder ver-te uma última vez mesmo que isso nada adiantasse. Se eu pudesse estar contigo uma última vez irias saber porque me sinto assim vagabunda nesta vida em que não sei o que fazer e me deixo levar pelos empurrões de uns e de outros, e para não os magoar magoo a mim mesma, porque o mundo girou mas eu fiquei parada no mesmo lugar sempre à espera que fosses tu a tomar o primeiro passo. Agora vejo que não valeu a pena revoltar-me tanto e que não saí do mesmo lugar porque andava demasiado ocupada às voltas com os meus pensamentos.
Por enquanto só tenho vinte anos e sinto-me perdida neste mundo, nasci a gritar e assim vou continuar a gritar por aquilo que quero, vou cerrar os punhos e não vou deixar as forças fugirem de novo como até aqui tenho feito, porque o que eu quero é viver a vida mais do que ela é, e olhar para o passado e sentir que vivi, estar presente e sentir-me feliz, ver o futuro ao longe e não sentir pena de nada que tenha feito porque não quero morrer arrependida da felicidade que senti ou dos pecados que cometi e hei-de pecar as vezes que forem preciso se isso me fizer feliz.
A nossa vida somos nós que a construímos pelos nossos passos e com os nossos dedos e não nos deixando levar pelo mundo que nos rodeia, a menos que o mundo seja forrado por pessoas como tu mas isso é outra história que depois te contarei se tiver tempo.
Nair Sobral Santos
10-03-2002 17:40
Caos
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